A análise de discurso: múltiplas faces do sujeito
Existem diferentes formas de se abordar um determinado objeto de estudo. Cada uma delas orientada por suas respectivas filiações teórica. Isso acontece com a língua, enquanto objeto de estudo. Um variado leque de posições teóricas possibilita diferentes tipos de abordagem com base nos quais a língua deverá ser enfocada.
Um retrospecto das investigações efetuadas no campo da ciência da linguagem a partir do estruturalismo inspirado em Saussure (1957) revela, inicialmente, um enfoque centrado exclusivamente na língua em si mesma, como produto acabado, dissociado de suas condições de produção.
Embora interessada em estudar a língua não como produto, mas como algo dinâmico, adquirido através de processos inatos, ou seja, a língua voltada para um falate-ouvinte ideal, numa comunidade homogênea, a gramática transformacional concebida por Chomsky (1957) também não conseguiu ultrapassar as fronteiras da língua enquanto sistema formal, desconsiderando, assim, os fatores extralingüísticos que lhe dão sentido.
Assim, tendo em vista a necessidade de explicar fenômenos que se situam para além da imanência do sistema, a saber, os fenômenos extralingüísticos, surgem estudos correlatos como os da sociolingüística e da psicolingüística, entre outros, que por sua vez, não romperam o limite de seus respectivos domínios.
No entanto, uma nova abordagem da língua, identificada por sua oposição ao quadros teóricos então vigentes, começa a ganhar corpo. Trata-se da análise de discurso (AD), fundada por Michel Pêcheux na França, nos anos 60. Nessa nova abordagem, a língua é apresentada não como um sistema fechado em si mesmo, mas projetada em sua relação com o outro, como interação social.
A propósito, Orlandi (1999), ao estabelecer o objetivo central que direciona as investigações no âmbito da AD assim expressa: “...os estudos discursivos visam a pensar o sentido dimensionado no tempo e no espaço das práticas do homem , descentrando a noção de sujeito e relativizando a autonomia do objeto da lingüística.
Neste quadro de referência, pretendemos mobilizar, mesmo sumariamente, para os propósitos desta investigação, alguns conceitos que compõem a base teórica desse outro olhar sobre a língua, expressos de modo particular nas idéias de Althusser, Lacan e Pêcheux.
Antes de mais nada, é preciso ressaltar a natureza plural da AD. Ela deve ser encarada como uma disciplina aberta, que se mantém em contínua interlocução com outras áreas do conhecimento humano. Seus fundamentos se relacionam com lingüística relida por Pêcheux, assegurando para a língua o status de ciência, com o materialismo histórico sendo garantido por meio da leitura althusseriana de Marx e Engels e com a psicanálise freudiana revisitada por Lacan, destacando o sujeito em sua relação com o simbólico, pensando o inconsciente estruturado pela linguagem.
As implicações decorrentes do envolvimento das três regiões do conhecimento, na visão de Gregolin (1999), são de natureza teórica e metodológica. Quanto à primeira, tem-se a materialidade do discurso que é lingüístico-histórica, ou seja, enraizada na historia para a produção de sentido; a forma sujeito do discurso que é ideológica, assujeitada; a ordem do discurso em que o sujeito inscreve na língua e na história; o sujeito descentrado, embora tenha a ilusão de ser a fonte de seu discurso, mas o sentido é um já dito antes em outro lugar. Com relação à segunda implicação, tem-se o dispositivo de análise do processo discursivo; a identificação no discurso de marcas relativas à memória e a história e, como conseqüência, a relação entre a ordem da língua, da historia e do discurso.
Orlandi (1999), por sua vez, ao tratar do objeto de investigação do AD, delineia, de forma clara e precisa os leves contornos que são próprios desse campo de investigação, afirma:
(AD)”Interroga a lingüística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o materialismo perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele.”
Á luz dessas considerações pode-se deduzir que a AD se caracteriza realmente como um quadro teórico em constante interlocução com outras ciências, sem perder de vista, naturalmente, o objeto de investigação que lhe é peculiar.
A abertura da AD para outros referenciais teóricos pode ser considerada como uma de suas prerrogativas que, como veremos mais adiante, possibilitou várias formulações, entre outras, aquelas propostas por Pêcheux (1975), mais precisamente na segunda etapa da AD.
Considerada como uma das questões centrais e desafiadoras, a discussão sobre a natureza do sujeito ou suas múltiplas faces não se apresenta como algo encerrado, definitivamente afastado do fórum de debates sucessivos entre estudiosos da AD. Prova disso que foi o percurso reflexivo realizado neste trabalho, o que autoriza afirmar que a questão do sujeito é, na verdade, uma questão aberta. (Possenti, 2003)
Talvez um dos pontos-chaves do embate efetivo entre estudiosos e críticos da AD se situe num aspecto importante, ou seja, no tratamento reducionista dispensado por esse referencial teórico ao sujeito do discurso, como interpelado pela ideologia. Vozes discordantes se manifestam tentando abrandar o tom agressivo dado a expressão sujeito assujeitado. Vozes outras, no entanto, respaldadas em posturas críticas dos postulados teóricos da AD continuam evidenciando o papel do sujeito submisso às condições de produção de seu discurso. (Orlandi, 2002).
Em suma, o debate constante que se trava e em relação a esta e outras questões não desqualifica a contribuição efetiva que a AD vem apresentando como um campo transdisciplinar de inegável relevância para o desenvolvimento das ciências humanas.
José Anchieta
Instrutor de Português
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